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O Beijo de Amor e a Relação Terapêutica
João Carlos Vaz 14-01-2019
Mais uma manhã que toca o meu despertador. O mesmo ritual: minha higiene pessoal seguida da minha primeira refeição e, por fim, uniformizar-me com meus trajes de profissional.
- Não esqueça de seu ‘tapa olho’!
Dia-a-dia, semana a semana, ano após ano. E lá vou eu na crença de que estou a melhorar, que sei mais sobre o outro e sou melhor artesão na minha arte.
Um dia acordei atrasado, tropecei e caí. Com isso, mal tive tempo para comer, fiquei tão confuso que nem sei se uniformizei-me. Acho que era um dia de muito frio, ao levantar-me devo ter tropeçado na imensidão de cobertas descaídas. O facto é que esqueci da viseira…
Comecei a dar uma vista de olhos nos processos clínicos e reparei que ao fim deste tempo todo, minhas hipóteses clínicas estavam todas erradas!
Como é que eu não tinha visto aquilo?
Acreditei durante muito tempo que era Psicólogo, acabei por esquecer o que era ser ‘eu’. Minha fé era tal que já estava a ser como o Alferes do Espelho de Machado de Assis. Já não conseguia ver além daquilo que habituei-me a ser todos os dias. Percebi que só aprendi coisas de que desconfiava.
Deixei de surpreender-me!
Como é que podia ‘ensinar’ ao outro a ser ele mesmo, seu eu estava sendo só uma metade? Melhor, uma fração.
Quanto mais psicólogo acreditava ser, menos ‘eu’ pretensamente era.
Minha unilateralidade de aprendiz são, esquecia-me de quão doido eu fui, ou sou, pois mais louco é aquele que não sabe que o é!
Minha presunção egóica distanciava-me do outro, afastava-me de mim.
Estava tão encantado com a profissão que deixava-me fascinar, a ponto de encarnar a palavra Psi no meu corpo. Transformava-o na minha aparência, nos meus gestos, na minha postura e no meu tom…
Cantava essa mesma melodia todos os dias!
Maya Angelou já havia alertado há algum tempo atrás: “As palavras são coisas… elas ficam nas paredes, em suas roupas e, finalmente em você”. Na altura estava com a viseira e não vi com olhos de ver.
As palavras encantadas estavam presentes em muitas formas: nos livros, ‘mestres’, ‘gurus’, na internet… As vezes balbuciavam interiormente, mas como não queria ser louco, não as ouvia.
Acabei por esquecer que a finalidade da psicoterapia é lembrar de esquecer, ‘quebrar o feitiço’!
Caí na mesma arapuca que ‘condeno’. Usar de palavras para substituir por outras, ou melhor, de usar uma magia para substituir a antiga. Desse jeito acreditava que mudava o passado, mas na verdade, só estava a contribuir ainda mais para ajudar o outro a esquecer qual era a verdadeira palavra que o tornou aficionado.
Esqueci-me que no fim o que importa é ajudar o outro a se lembrar a ser o que se é!
Daí a importância do erro, do lapso, das falhas e da ansiedade…
São ecos de palavras adormecidas a espera de um beijo de amor.
São palavras não ditas que outrora falavam-nos daquilo que realmente éramos.
Reparei que não deixava ser beijado. Não estava a ser desencantado.
Não aceitava que a palavra proferida da boca do outro também fosse beijada, despertada de seu sono profundo.
O segredo da psicoterapia talvez seja isso: beijar cada palavra beijada.
Descobrir sua cara-metade alegórica e anímica!

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