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O Método Analítico de Interpretação dos Sonhos

João Carlos Vaz Furtado
Sonho 1: “Dependência, Ressaca e Insónia”

Toca o meu telefone, logo suspeito que era o André, ouço sua voz que transmitia dúvidas, havia chegado mais cedo e estava a minha espera no carro acompanhado da namorada.

Logo que o recebo a porta do consultório, André abre um largo sorriso.

Seu relato inicial é referente a uma sensação intensa de distanciamento e desligamento, presente há um mês. Sente-se confuso no tempo e com falhas de memória.

Desconfia que essa sensação é porque não consegue dormir, sente como se estivesse num sonho…

Por volta de um mês atrás descreve um episódio, nomeado por si de ‘crise de ansiedade’, com uma espécie de desorientação generalizada: tontura, taquicardia, pensamento descontrolado e os músculos presos. Como forma de tentar aliviar este sofrimento deita-se no chão. Recorre às urgências hospitalares e é internado.

Após a alta médica recorre ainda a um psicólogo, ao padre e ao bruxo.

Recorda que quando tinha 16 anos também ficou uma noite sem dormir, e a sensação é como se não estivesse cá, de acordo com suas palavras ‘estava morto’. Neste contexto também recorre a ajuda de um Bruxo.

Suas dificuldades em dormir já vêm desde muito cedo, relembra que dormia na mesma cama com sua mãe e irmã mais velha. Nesta época o pai não estava presente por causa do trabalho.

Já mais tarde quando passou a dormir sozinho tinha de ter uma luz acesa. Sente-se em pânico em situações que tem de dormir fora de casa, como foi o caso recente em que teve de ser hospitalizado por causa de uma cirurgia ao nariz, durante o internamento sentia a necessidade de estar com a luz acesa.

André descreve-se, com a ajuda da namorada, como uma pessoa generosa, mimado pela mãe, com dificuldades de expressar suas emoções quando sente a perda, a frustração, a raiva e o medo. Neste contexto comunica-se a chorar.

Decido perguntar dos sonhos. Conta que é comum sonhar que está a saltar da rampa de casa e voar. Na noite anterior a sessão teve o seguinte sonho:

"Eu e a namorada. Havia uns carros e um drogado, ele estava ressacado (por causa dos olhos – sono). Tinha uma seringa e queria espetar na minha namorada. Como ela tem fobia às agulhas pedi que ele se afastasse, tinha receio que ele espetasse a agulha nela. O drogado diz que teve que fazer isso porque estava ressacado.”

Seguem-se algumas associações, como norma metodológica no trabalho psicoterapêutico, despedimos-nos a seguir e enfatizo a importância de anotar os seus sonhos.

Como princípio, tenho o hábito de ‘girar’ a volta das impressões que cada cliente suscita após a sessão. De imediato, ao recordar da sessão, emergiu o sentimento de André numa postura gentil, simpática e respeitosa. Lembrei dele dizer que sempre esforçava-se para ser bom. Inclusive estava a viver um grande conflito por causa disso, seu patrão já não o pagava há algum tempo e, segundo sua observação, parecia não ter problemas económicos que justificasse tal falta, afinal esbanjava bens materiais. Mesmo assim, André não conseguia dizer nada, não expressava sua frustração e raiva que esta situação estava a causar. É provável que o patrão fosse como um ‘pai’ para si…

Tentei estabelecer uma ligação destas informações iniciais com o seu primeiro sonho. Parti do princípio que o sonho é um processo natural de auto-regulação psíquica, neste caso, refleti o que o sonho poderia estar a compensar em relação a visão limitada e circunstancial de sua personalidade atual. O que poderia estar de fora da alçada do seu ego em termos estruturais: atitudes, adaptação/individuação e identidade.

Nos primeiros encontros, via de regra, dou mais ênfase a uma entrevista clínica minuciosa concernente aos dados desenvolvimentais, motivo da consulta, sintomatologia e estado mental…; dentre as diversas questões que podem ser feitas nas entrevistas, indago como é o sono, se sonha e o conteúdo dos sonhos.

Curiosamente, de forma espontânea André trouxe a temática onírica às consultas, o que pareceu-me muito útil como informação diagnóstica complementar aos dados da entrevista, mas também como estratégia de intervenção futura.

E foi assim a previsão do que seria o futuro de nossos encontros. Provavelmente os sonhos seriam como o ponto de partida de nossas conversas e, quem sabe, destas crónicas. Deveria fitá-los como um organismo psíquico, uma realidade viva, em que todos os seus elementos pertenceriam à identidade de André.

Sabia de antemão que as suas imagens oníricas, apesar de se apresentarem num primeiro plano em estado rústico, necessitariam ser traduzidas em símbolos. Das associações deveriam converter-se em significados, misturá-los, apurá-los e, finalmente devolvê-los em forma de interpretação, que lhe causasse surpresa, mudança, bem-estar!

Este é como um primeiro capítulo de uma série de seis sonhos.

Vamos às associações de André:

Refere sentimentos de medo, sobretudo relacionado à namorada que para si significa ‘tudo’. Medo de si próprio fazer mal e magoá-la. Associa o drogado com o medo. Descreve sentimentos extremamente ambivalentes do ponto de vista moral (ser bom vs. mau). Sente muitas dificuldades em expressar-se, sobretudo a nível verbal.

Minha interpretação é imediatamente problematizada assim: o que está de ‘fora’ da consciência de André e, que de certa forma ele mais teme? A direção compensatória advém da complementaridade emocional inconsciente, obviamente estabeleci a ponte com a raiva.

Entendo a raiva como um sentimento oposto ao medo. Enquanto a raiva incita para a ação, o medo é paralisante. No entanto, ambas as emoções percorrem circuitos biológicos similares: ambas apresentam o aumento da atividade cardíaca e a amplitude respiratória; com este aumento a tendência é haver mais atividade mental cuja finalidade é a descarga motora (através dos músculos das pernas, braços, mãos e pés) para poder fugir, parar ou, ao contrário, lutar.

André identifica-se maioritariamente numa atitude que privilegie o ‘bem’, daí sua provável postura gentil, respeitosa e ‘amável’. Por outro lado, procura ‘eliminar’ toda atitude que identifica como má, atribuindo a mesma um significado negativo. Com isso não dispõe de recursos psicológicos para lidar com situações inevitáveis da vida que exigem ‘luta’.

Reparem que o seu primeiro sonho retrata uma temática em que o outro pólo de sua identificação é o drogado. A representação deste é alguém toxicodependente que através de um objeto de penetração irá agredir a pessoa que é ‘tudo’ para si.

Se interpretarmos que os elementos do sonho são todos pertencentes ao sonhador, diríamos que o drogado é a personificação de aspetos que o André não integrou.

É curioso que esta identificação é mais aparente nos olhos do drogado, pois assim como ele, o estado de insónia assemelha-se ao estado de ressaca. Outro aspecto identificável é a toxidade presente em qualquer dependência patológica. André percebe que tem dependências que não o permitem viver livremente, e estas são mais manifestas no momento que vai dormir. A toxidade é tal que deixa de ser funcional, desorienta-se na mobilidade do dia-a-dia.

Finalmente, o ‘drogado’, agora ele mesmo de forma compensatória, é motivado pela dependência, ou seja, quem assim o é, por norma vai viver em constante estado de frustração, pois é praticamente impossível viver livre e com bem-estar se estou diante da necessidade de algo ou alguém para sentir-me relaxado, e assim dormir meu sono tranquilamente, deliciosamente.

O estado de frustração, de forma primária motiva-nos para a perceção daquilo que nos falta, desejamos e necessitamos. Mas se não somos capazes de converte-la criativamente para a realização adaptativa e natural (dentro do processo de individuação), o resultado será a raiva. André sente-a como má, é incapaz de mobilizá-la para fazer valer seus direitos trabalhistas e, mais, teme-a (inconscientemente) que esta assuma o lugar do ego atual e converta-se negativamente a ponto de atuar na interação com a pessoa que é tudo para si, a namorada. Não nos esqueçamos, quanto mais ‘ressecados’ estivermos, mais incapazes seremos de conter o que está latente em nossa mente!

Parece-nos que o resultado disso é a perda, o desamparo, como provavelmente se sente quando não consegue dormir: desprotegido, inseguro, com medo.

É meu costume interpretar este mecanismo emocional com a metáfora do ar condicionado, em que o meio externo converte-se no oposto no meio interno. Neste caso, a frustração e a raiva gerada a partir do meio externo (exemplo: o patrão estar em dívida consigo) converte-se em medo no mundo interno. 

Aqui as imagens são sentidas como perigosas e ameaçadoras à integridade do ego.

Nesta fase, a sua identidade é sentida como ‘nada’ sem a namorada que é ‘tudo’ para si. Ameaçá-la é ameaçar a si mesmo, sem ela é como se dissesse ‘sou nada’!



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