Técnica de Imaginação Ativa:
A Jornada do Herói.
João Carlos Vaz Furtado[i]
A técnica da
Imaginação Ativa foi desenvolvida por Jung com a finalidade de estabelecer um diálogo
com personificações de aspectos inconscientes. Provavelmente, a primeira
experiência registrada desta técnica encontra-se na biografia de Jung (Memórias,
Sonhos e Recordações):
“Estava sentado na minha escrivaninha, uma vez
mais, pensando a respeito de meus medos. Então, fui-me deixando soltar. De
repente, foi como se o chão literalmente cedesse sob meus pés e eu mergulhasse
em abismos escuros. Não pude resistir a um sentimento de pânico. Mas então,
abruptamente, a uma profundidade não muito grande, apoiei os pés numa massa
pegajosa e macia. Senti grande alivio, apesar e estar aparentemente em completa
escuridão. Um pouco depois, meus olhos se acostumaram à obscuridade
crepuscular. Frente a mim estava a entrada de uma caverna escura, na qual
permanecia um anão com uma pele coriácea, como se estivesse mumificado. Passei apertadamente
por ele, através da entrada estreita e avancei, mergulhando os joelhos na água
gelada, ate o outro lado da caverna onde, sobre uma rocha saliente, vi um
resplandecente cristal vermelho. Segurei a pedra, levantei-a e descobri uma
parte oca na sua face interior. De inicio não pude compreender nada, mas então
vi que havia água corrente. Nela, flutuava o corpo de um jovem de cabelos
loiros, com um ferimento na cabeça. Atrás, vinha um gigantesco escaravelho
negro e, em seguida, um sol vermelho, nascente, surgindo das profundezas da água…
(Jung, MDR, p. 179)
As imagens
retratadas nessa experiência subjetiva são símbolos que representam a jornada
heróica: o mergulho no desconhecido, o chamado, as provas, o triunfo e o retorno.
Esta ‘viagem’ circular é a oportunidade do ego sacrificar-se em busca de algo
que distinga-se de sua visão limitada e momentânea da problemática em que está
inserido. E nesse mergulho nas profundezas de si-mesmo, ele encontra a dádiva
que poderá transformar a si mesmo.
A Imaginação Ativa
permite a reconciliação com as partes polarizadas da psique, tentando obter uma
posição intermediária e integradora, visando restabelecer a unidade. Robert
Johnson define assim a técnica: “Na Imaginação Ativa, os eventos se sucedem em
um nível imaginativo, que não é nem o consciente nem o inconsciente, mas um
ponto de confluência, um solo comum onde ambos se encontram em termos
igualitários e juntos criam uma experiência de vida que combina os elementos de
ambos. Os dois níveis de consciência fluem um para o outro e começam a
trabalhar juntos, como resultado, nossa totalidade começa a se converter em
unidade. O diálogo da mente consciente com o inconsciente dá origem a uma função transcendente, o Self, que surge
como a síntese dos dois.” (Inner Work, p.156)
A Função Transcendente é o "terceiro" reconciliador que resulta
(na forma de um símbolo ou uma nova atitude) depois dos opostos conflitivos
terem sido conscientemente diferenciados e a tensão entre eles controlada. É
portanto uma
função psíquica que surge da tensão entre a consciência e o inconsciente e
sustenta a união deles. Do ponto de vista simbólico representa a dádiva do
herói no retorno de sua aventura, aquele aspecto que poderá transformar sua
realidade, os novos conhecimentos adquiridos. A função transcendente é
essencialmente um aspecto da auto-regulação da psique. Ela tipicamente se manifesta
simbolicamente e é experimentada como uma nova atitude em direção à vida.
O símbolo
arquetípico do herói
O herói
mitológico retrata condições para que este possa caracterizar-se como tal, após
sua partida, ele seguirá por uma longa jornada, cujas provações, testes e
experiências penosas transformarão sua consciência. É como se tivesse que
deixar o seu mundo atual para encaminhar-se em busca de algo mais profundo,
distante ou alto, visando atingir aquilo que faltava à sua consciência, no
mundo anteriormente habitado. E no momento de seu retorno surge-lhe o grande
problema, permanecer ali deixando o mundo ruir, ou retornar com a dádiva
tentando manter-se fiel a ela, ao mesmo tempo em que reingressa no mundo
social.
Este símbolo quando
constelado nos diferentes contextos existenciais, proporciona ao indivíduo
condições de mergulhar no desconhecido, e através da ampliação dos símbolos
operados nesse campo, transforma a sua consciência visando atingir aquilo que
faltava antes.
Segundo Jung, a
simbologia arquetípica do herói representa "as ideias, formas e forças que
moldam ou dominam a alma", sendo portanto neste sentido mais do que
somente uma aventura interior, é a realização de um processo almejando a
individuação. Seus símbolos funcionam como modalidades de apreensão da
realidade, fenómeno este caracterizado pela transformação da relação do ser
humano e seu mundo, potencialidade presente na sua condição arquetípica.
Tais símbolos
relativos ao herói muitas vezes não são integrados à consciência, porque considera-se
o paradigma cognitivo-racional como o único verdadeiro e objetivo.
Provavelmente é o efeito de séculos que desvalorizou a subjetividade,
associando-a a superstição e o erro. Este fenómeno dissociou a consciência do inconsciente,
o corpo da psique, a religião da ciência, características do ciclo patriarcal
defensivo, que discrimina a relação eu / outro, ego / inconsciente.
Nossa realidade
atual é notavelmente tecnológica, mecanicista e inautêntica em relação à
linguagem simbólica existente na humanidade, dificultando ainda mais a
compreensão do que significa essa cisão. A fábula do aprendiz de feiticeiro
retrata esta temática: O aprendiz após ter sido imcubido de cuidar do castelo
enquanto seu mestre estivesse fora, percebeu o quanto era difícil mantê-lo
organizado só com uma vassoura mágica, procurou utilizar de sua aprendizagem
ainda incompleta e usar da magia para criar mais vassouras que pudessem
auxiliá-lo, mas o "feitiço virou contra o feiticeiro", perdeu o
controlo da situação, afinal sua inflação egóica deixou-o cego, perdeu de vista
sua limitação enquanto aprendiz de feiticeiro. Metáfora semelhante encontra-se
no mito de Dédalo e Ícaro, este jovem ultrapassa seus limites não seguindo os
conselhos de seu sábio Pai para que voe nem muito alto e nem baixo. Acaba por
cair nas águas quando a cera que seguravam suas asas derreteram, tão próximas
que haviam ficado do sol.
Tais fábulas e
mitos ilustram profundamente o que acontece quando o conhecimento, enquanto
instrumento de ampliação da consciência é dissociado de suas raízes
arquetípicas. Demonstra a dificuldade do que verdadeiramente significa retornar
com a dádiva ao mesmo tempo que o herói luta para reingressar no seu mundo
social. Atualmente, a humanidade perdeu a noção do que significa evoluir e
seguir sua jornada, do mesmo modo que cria grandes feitos tem que deparar-se com
seu oposto, como por exemplo, o conhecimento atómico. É essencial na
sobrevivência do herói a sua liberdade de ir e vir entre os mundos, de
conectar-se as necessidades individuais com as coletivas.
O tema
da queda, análogo a expulsão do Jardim do Éden, é comum em sonhos, normalmente
representando a perda do antigo estado de coisas e o nascimento de uma nova
percepção consciente. A consequência de comer do “fruto proibido”, de ter uma
“queda”, ou mesmo cometer um erro é a consciência dos opostos, pois a cada novo
aumento de consciência complementarmente há um estado de conflito.
Entretanto,
em algum ponto, a não ser que coma o fruto proibido, roube o fogo dos deuses,
tenha uma “queda” ou cometa um erro, a pessoa permanecerá presa numa
transferência de dependência e seu desenvolvimento não terá continuidade, ou
seja, apesar do perigo que representa a inflação ela é fundamental para o
desenvolvimento da personalidade.
Inflação é a atividade e o
estado que acompanham a identificação do ego ao Self, no qual o eu atribui a si
qualidades de algo mais amplo (Self), além de suas próprias medidas. Todo indivíduo
nasce num estado de inflação. Os diversos mitos descrevem esse estado original
do homem como um estado de harmonia, unidade, perfeição, de vida paradisíaca,
um estado de comunhão com os deuses, a idade de Ouro segundo Hesíodo, o homem
original redondo de Platão. Também é possível traçar paralelos entre o mito do
Homem redondo e original com os estudos realizados por R. Kellog a respeito da
arte na pré-escola, o qual foi observado que as formas circulares são imagens
predominantes em crianças que estão aprendendo a desenhar.
O desenvolvimento da consciência
depende do conhecimento dos opostos. É
elementar integrar ambas as polaridades dialeticamente na personalidade para
que possa ter a liberdade de ir e vir entre os mundos, entre consciência e
inconsciente, representando essencialmente
a relação do ego e o Self.
Tal facto é especialmente
verdadeiro quando percebemos que o chamado, presente atualmente na juventude
confunde-se com a fama e sucesso, totalmente voltados para o mundo externo e
material, estando realmente inconscientes de suas potencialidades arquetípicas
simbolizadas pelo herói. Tal facto parece ser mais verdadeiro ainda quando se
observa onde a juventude atual busca inspiração para seus heróis, que temáticas
tais personagens modernos retratam atualmente.
Nietzsche relata
em sua obra ASSIM FALOU ZARATUSTRA, que "passa-se com o homem o mesmo que
com a árvore. Quanto mais quer crescer para o alto e para a claridade, tanto
mais suas raízes tendem para a terra, para baixo, para a treva, para a
profundeza – para o mal". Esta é a condição básica para o desenvolvimento
do chamado, a compreensão do inconsciente, perceber a função do herói enquanto
símbolo arquetípico importante para nossa transformação. Desde o nascimento, a
cada evolução ele se constela para vencermos uma nova etapa de nossa vida. E
muitas vezes a sabedoria está justamente no re-conhecimento da matéria
primordial, de sua origem, em seu estado inicial, como observa-se no estudo de
células troncos. O inconsciente representa assim a potencialidade da
consciência em seu estado original, e sendo assim sempre mais amplo que a
capacidade do ego tem em apreender.
O chamado, a
recusa, o caminho das provas, as tentações, o triunfo, o morrer para renascer,
são etapas pelas quais o herói tem de passar. Seu sacrifício pode ser
representado como a “queda” do ego, ilustrado como uma descida ao mundo dos
mortos, ou mesmo ser engolido por uma baleia, afinal toda essa energia
encontra-se nas profundezas de seu inconsciente, e o poder da vida está em vivenciá-lo,
para então retornar novamente ao mundo egóico com a dádiva que irá transformar
a sua consciência ao mesmo tempo individual e coletiva, o herói é a ponte do
ego e do Self.
As exigências
básicas para o herói são as virtudes cavalheirescas da lealdade, temperança e
coragem, aspectos esses que normalmente herdou de seu sistema patriarcal,
fundamentais para o seu retorno, afinal sem esse padrão pode-se perder no
inconsciente. É preciso não ceder a nada que não seja à sua lealdade aos
valores da vida neste mundo, tão bem representado por Gawain quando teve de
enfrentar o Cavalheiro Verde. Sua virtude principal foi de sempre manter-se
fiel aos valores “institucionalizados” pelo Rei Arthur, herói este portador da
espada de Excalibur, criada nas profundezas do Lago da Deusa. Rei este que
unificou o patriarcado e o matriarcado, consciência e inconsciente, ego e self,
pois antes tudo era Uno, “um só rei, uma só terra”, é aquele que integraria as
necessidades do Cristianismo com o mundo pagão.
[i] Psicólogo Clínico no Aces
Alto Ave
Especialista em
Psicologia Analítica
Mestre Especialista
em Psicologia Clínica e da Saúde
Bibliografia:
- O poder do
mito\ Joseph Campbell, com Bill Moyers; org. Por Betty Sue Flowers; São Paulo:
Palas Athena, 1990.
- Campbell,
Joseph. O Herói de mil Faces. Ed. Cultrix\Pensamento, 1948.
- Johnson,
Robert A. Sonhos, fantasia e imaginação activa: a chave do reino interior. São
Paulo, Mercuryo, 1989.
- Jung, C.G.. Memorias,
sonhos e reflexões, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 14 edição.
-Excalibur: Ana Lia B.
Aufranc. Revista Junguiana, nº 4. 1986.
-Edinger, Edward. A
criação da consciência, São Paulo, Cultrix, 1999.
- Nietzsche, Friedrich
W.. Assim falou Zaratustra, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989
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