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I Jornadas de Saúde Mental: O Capitão e os mares da mente

Viagem de uma Vida[1]

João Carlos Vaz Furtado[2]


Palavras-chave: individuação – alteridade – inconsciente – arquétipo – interação – imagens do inconsciente - símbolo.

Sinopse: ‘Viagem de uma Vida’, comunicação realizada nas I Jornadas de Saúde Mental em Vizela, Portugal, propõe uma análise sobre o tema da navegação psíquica ao comando de capitães junguianos. Para isso, recorremos à cartografia analítica da psique, cujo itinerário é a análise de um trecho do filme ‘Clube dos Poetas Mortos’, o tema das sereias em Ulisses, a viagem ao mundo das imagens de Carlos Pertuis e, encerramos no Porto das imagens do inconsciente de Nise da Silveira.


Vamos dar início a nossa Viagem tendo como mapa de orientação a Psicologia de Carl Jung, psiquiatra e psicoterapeuta considerado opositor à primazia do racionalismo científico e a sua ênfase no mecanicismo da mente. A linha junguiana é outra, percebemos nitidamente a influência filosófica do Romantismo Alemão em seu traçado, através, por exemplo, da libertação da intuição e da imaginação, da dedicação aos símbolos e, sobretudo, na busca da unidade e da totalidade psíquica.

 Vejam este excerto escrito por Jung: “… árvores não podem existir sem animais, ou animais sem plantas, e talvez animais não possam ser sem o homem, ou o homem sem animais e plantas, e assim por diante. E sendo a coisa inteira uma estrutura, não é de admirar que todas suas partes funcionem juntas porque são parte de um ‘continuum’ vivo.”

A psicologia analítica mira superar o anacronismo do dualismo cartesiano e integrar os opostos.

A psique junguiana não se reduz à apenas processos racionais e cognitivos, nem tampouco ao inconsciente gerado a partir de uma tábula rasa. É isso tudo e além, pois incorpora um vasto oceano, o denominado inconsciente coletivo e seus arquétipos, e o ego flutua nele como um pequeno barco. Este mapa nunca foi uma página em branco que se constituiu apenas das impressões sensíveis obtidas do exterior, isto não significa, que nosso comandante negou olhar para as estrelas como forma de navegar, é uma parte do conhecimento.

A psique não é um lugar vazio onde se inscrevem as informações captadas pelos nossos sentidos, em que o ambiente é o único responsável pelo nosso desenvolvimento. Há um espaço interno rico que também serve de guia!

Mas como interpretar seus sinais? Ou as vezes, seus sintomas?

Aqui é a redescoberta da linguagem simbólica que fala através dos sonhos, da imaginação, da poesia e da arte… Esta é uma maneira mais ‘inteligente’ do que apenas o pensamento reflexivo, pois é uma linguagem natural dotada de sentido e finalidade.

Vamos agora conhecer a nossa rota de viagem. Enquanto aguardamos o embarque vamos rever um trecho do filme Clube dos Poetas Mortos. A seguir iremos visitar o tema das sereias em Ulisses e, logo depois, mudamos para a ‘Barca do sol’ ao comando de Carlos Pertuis. Por fim, e a fio, avançamos viagem ao comando da Dra. Nise da Silveira até o Porto das imagens do inconsciente.

Vamos todos subir nas mesas e saudar nosso capitão Professor Keating: ‘captain my captain’…; que forma mais sedutora e desafiadora para convocar a imaginação, o romantismo e a poesia naqueles jovens. Neste chamado eles são como os heróis a ouvirem o apelo da individuação: “aproveitem o agora e façam de sua vida algo extraordinário.”

Lembro também quando era estudante e também fui provocado a esse chamado, quase me aterrorizava a ideia de uma existência sem sentido, como se a vida fosse um nada e não passássemos de adubo para as flores. E a seguir dizia a mim próprio: carpe diem!

Convido a todos a reverem este filme enquanto aguardamos o embarque. E, se pudermos, analisemos juntos nossos aspetos ontogenéticos e filogenéticos presentes nesta narrativa. Por um lado, observamos o processo criativo, imaginativo e romântico do adolescente que tem a vocação para o teatro e, por outro lado, em colisão, a tirania patriarcal defensiva do pai e o ensino tradicional e não construtivista da escola.

È claro que para haver desenvolvimento há que confrontar nossas turbulências marítimas, abandonar aquilo que nos é familiar e ir de encontro ao desconhecido. Para isso, é preciso aprender a interagir democraticamente e criativamente com os nossos dilemas, tão bem representado por este jovem romântico, apaixonado pela vida e vocacionado para o teatro. Seu dilema era conciliar a este chamado em oposição ao conservadorismo, a atitude racional e pragmática do pai e da escola.

Já estou a ouvir o apito de embarque, ainda nos resta algum tempo para nos ater um pouco mais nesta fase juvenil de nosso desenvolvimento, ainda nem embarcamos e já estamos a sentir toda a agitação, intensidade e transformação a que estamos fadados, é preciso soltar âncora e lançar-se a viagem!

Mas atenção: É típico nesta fase ser tomado de grande romantismo, idealismo e estar mais vulnerável as influências revolucionárias e heróicas, tão bem ilustrada no mito de Ícaro: não voe muito baixo e nem muito alto. É comum na aceleração juvenil a ameaça de acidentes por cometer riscos desmedidos, como observamos na clínica casos de adolescentes, que podem ir desde um simples partir de um dedo (e as vezes o suficiente para conter este ímpeto juvenil), até traumatismos cranianos que podem comprometer a pessoa para o resto de sua vida e compor a sua identidade.

O professor Keating não conseguiu prever que estas turbulências juvenis poderiam ser perigosas, desvalorizou a sabedoria do Zen budismo que ensina: ‘ao sentir a neve mais pesada que ele, o galho do pinheiro verga e, com isso, a neve cai e ele não quebra.’ Era preciso ensinar a desenvolver a tolerância e esperar o momento oportuno para a individuação. Aquele jovem foi colocado num dilema irreconciliável entre a sua vocação e a autoridade paterna. A solução que encontra é a própria morte! A sabedoria desenvolvimental está em saber recuar para melhor saltar!

A dinâmica psicológica que visa superar nossos dilemas a fim de promover o desenvolvimento mental, em nossos termos, a individuação, o analista Carlos Byington denominou de alteridade. Neste território observamos que as divergências têm igual direito de expressão, pois os seus princípios estão assentes na democracia, na criatividade e no amor. Aqui a interação é baseada no entendimento, na igualdade e na verdade. Aceita-se a imprevisibilidade e a casualidade do encontro!

Esta perspetiva desenvolvimental pode ser visitada na obra deste experiente capitão pós junguiano, principalmente em seu último trabalho intitulado: “A viagem do Ser em busca da eternidade e do infinito: as sete etapas arquetípicas da vida pela psicologia simbólica junguiana.”

É momento de seguir viagem e pararmos no nosso primeiro itinerário para visitarmos o mito de Ulisses, sobretudo na passagem com as sereias, a fim de nos apercebermos porque Ulisses apesar de ouvir o canto não teve o mesmo final trágico do nosso jovem que analisamos no filme.

A viagem de Ulisses é intemporal, sua paisagem: mítica. A finalidade de sua viagem retrata o processo de individuação, no entanto, tem antes de passar por uma série de obstáculos, entre eles a passagem pelas sereias.

As sereias, híbrido de mulher e animal, usavam de seu canto para atrair os marinheiros até as águas repletas de rochedos, onde os navios corriam o risco de partir contra as pedras. Sim, as mesmas pedras, imagem tão presente na iconografia ocidental: é pedra no sapato, é a pedra no meio do caminho do poeta Carlos Drummond e é a rocha de Sísifo que tem de a rolar até o cume da montanha.

No entanto, nos concentremos agora na imagem do barco e tentemos nos desviar dos rochedos. O barco evoca a ideia de força e segurança numa travessia que pode ser difícil. Também, pode ser interpretado enquanto recetáculo, matriz feminina, materna e portadora da vida. O barco de Ulisses pode representar simbolicamente a imagem da vida e o convite para a viagem.

Segundo Joseph Campbell a aceitação do chamado pelo herói é essencial para a grande transformação que o ego irá atravessar. O ego sustentado pela sua matriz feminina e materna, representada pela relativa segurança que o barco pode transmitir, permite seguirmos viagem em mares antes nunca navegados em direção à alteridade:

“O sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa e, como sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade.

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.” (Fernando Pessoa)


É interessante percebermos que o barco também tem matrizes masculinas e paternas, ou seja, além de recetáculo, é também fruto de uma racionalidade, de um planeamento organizado que visa atravessar com segurança a imprevisibilidade do mar, da mente inconsciente.

A união destes dois princípios, o materno e o paterno, como por exemplo, o acolhimento e a racionalidade, permite que o processo psicoterapêutico possa seguir para bom porto.

Outro aspeto masculino e paterno presente na simbologia de Ulisses (assinalemos a presença da deusa Atena como fonte de inspiração para Ulisses) é o uso das armas do ‘intelecto’, o poder raciocinar e ‘calcular’ possibilidades, a fim de encontrar uma estratégia para superar as sereias e seu canto, que poderia levá-lo ao descontrolo e empurrá-lo para baixo, ao abismo, aos rochedos mortais.

Reparem que as sereias estão localizadas próximas a uma ilha, símbolo do isolamento, do objeto parcial, cuja posição dissociativa é típica dos quadros de psicopatologia. Já a posição da totalidade, comparativamente ao continente, remete ao sentido da unidade, do equilíbrio e da coesão mental. Quantas vezes dizemos entre nós, profissionais de saúde mental, primeiro é preciso dar continência, não no sentido de saudação militar, mas de conter, ser recetáculo para que o outro se apoie com segurança e, tendo o psicólogo como companheiro de viagem.

Este encontro de Ulisses com as Sereias pode-se interpretar não como a meta, mas como uma etapa transitória de possíveis fixações desenvolvimentais, que necessitam ser elaboradas para seguir a bom porto. São como perigos da navegação inevitáveis, que nos iludem e, por isso mesmo, nos deitam abaixo, ao fundo do mar, ao inconsciente.

Mas aqui a prudência vem em auxílio do ego, pois a sabedoria representada neste mito pela velha sábia, a feiticeira Circe o aconselha para que mantenha distância, de forma que o canto não seja ouvido. Mas nós sabemos, que o fruto proibido é que aquele que mais apetece, e obviamente não ouvimos tais conselhos dos mais velhos. Assim, como Ulisses, desejamos ouvir o canto, e ao mesmo tempo, escaparmos salvos desta experiência profunda, que é o encontro com as nossas sereias internas.

A curiosidade e a rebeldia, típicas da juventude é também um ato de consciência que visa a individuação. Talvez o segredo seja aprendermos a equacionar este ímpeto rebelde com a capacidade de contenção, representada pelo mastro no centro do navio.

Ulisses decide então ouvir o canto, pede aos seus marinheiros que tapem seus ouvidos com cera e, a si, que o amarre no mastro! O mastro no centro do navio representa o eixo central, na abordagem analítica, o Self, o arquétipo central que caracteriza os princípios de autorregulação, organização, desenvolvimento e adaptação, cujo porto é a totalidade e o processo de individuação.

Em nossa viagem, Ulisses ensina-nos uma coisa muito importante, as nossas sereias internas, presentes profundamente em nossas mentes, precisam ser mobilizadas para potenciar a busca pela individuação, o sentido profundo da existência. No entanto, antes é preciso confrontar nossos conflitos, consciencializar e suportar nossas coisas desagradáveis e muitas vezes não aceite. E, principalmente, estar centrado em si mesmo e no seu mastro a fim de não iludir-se com falsas seduções de caráter impetuoso e compulsivo.

Infelizmente, nem todos são capazes de fazer a travessia como Ulisses, e mergulham destrutivamente no oceano psíquico, pois o barco pode fragmentar-se no embate com as pedras. Foi assim na análise do personagem do filme e, nos parece que também aconteceu o mesmo com Carlos Pertuis, ainda jovem, provavelmente nesta etapa da vida adoeceu mentalmente e, neste embate com os tais rochedos simbólicos, fragmentou seu ego.

É provável que ao ouvir o canto das sereias, Carlos mergulhou profundamente em seu oceano e naufragou, de tal forma que em toda a sua trajetória no hospital psiquiátrico raramente observamos o seu ego retornar à superfície.

É hora de nos deslocarmos para a ‘Barca do sol’ de Carlos Pertuis. A sua biografia é escassa, sabemos que seus avós eram franceses, nascido no Rio de Janeiro, único filho homem no meio de mais duas irmãs. Mimado pela mãe, dificilmente relacionava-se com as mulheres. Era considerado psicologicamente imaturo, sensível, com instrução primária e um complexo mundo interno.

Às vésperas da morte de seu pai, este pede que ele assumisse a responsabilidade da casa, a chefia, foi trabalhar numa fábrica de calçados, deixou de estudar até a irrupção da psicose.

Nise descreve-o assim: “Carlos, há vários anos, vinha sendo dilacerado por conflitos pessoais. Esses conflitos sugavam a energia do ego que ia se enfraquecendo e já começava a vacilar. Certa manhã, raios de sol incidiram sobre o pequeno espelho de seu quarto. Brilho extraordinário que deslumbrou-o e surgiu diante dele uma visão cósmica: o ‘planetário de Deus’, segundo suas palavras. Gritou, chamou a família, queria que todos vissem também aquela maravilha que ele estava vendo. Foi internado no mesmo dia no velho hospital da Praia vermelha. Isso aconteceu em setembro de 1939. Carlos tinha 29 anos. Sua mãe recomendou o internamento, é diagnosticado com esquizofrenia, e ele ficou lá o resto da vida.”

Esta imagem do planetário de deus só se soube anos depois, quando Carlos tentou reproduzir esta mesma imagem na terapêutica ocupacional desenvolvida por Nise da Silveira. A irmã de Carlos relata a Dra. Nise que foi esta a razão do internamento. De doente mental a artista Carlos produziu mais de 21400 obras!

No filme produzido por Leon Hirszman, imagens do inconsciente, pode-se ver que a imagem do planetário é a que se fixa mais tempo, repetida três vezes. Este filme é uma viagem pelo mundo das imagens de Carlos. Ele é dividido em sete fases: mandala; geometrismo; rituais; sombra; anima; a dimensão do real; a dimensão cósmica que encerra com o título deste filme: A barca do sol.

Estamos a chegar próximo do fim de nossa viagem, espero que apesar da presença de alguns momentos de agitação marítima estejam a aprecia-la. Antes de chegar ao porto final, agora ao comando da Dra. Nise da Silveira, vamos conhecer um pouco mais a trajetória pessoal e profissional da nossa comandante. E mesmo no final, publicitar a sua carta de navegação, como forma de estimular e inspirar aos presentes, profissionais de saúde e, não só, mas ao público em geral que imagino pertencer a diferentes itinerários.

A biografia de Nise permite-nos compreender esta grande personalidade, considerada das mais influentes e importantes para o desenvolvimento da psiquiatria internacional.

Filha única, seu pai era professor de matemática e jornalista, sua mãe pianista. Aos 16 anos saí de casa em Maceió e vai para Salvador estudar medicina, única mulher numa turma de 157 alunos. Em 1927, após a morte de seu pai, segue sozinha para o Rio de Janeiro. Após concurso público, em 1933, ingressa como médica psiquiatra no hospital da praia vermelha. Nesse mesmo ano é acusada de comunista e é encarcerada durante 15 meses. Liberta, mas afastada do serviço público, só retorna ao seu posto de trabalho em 1944 no centro psiquiátrico de Engenho de Dentro. Aos 39 anos, se depara com os tratamentos usuais na psiquiatria: o cardiazol, o coma insulínico, o eletrochoque e a lobotomia. Considerava estes métodos violentos, o que a levou procurar alternativas, é assim que cria o setor de Terapia ocupacional (TO).

Inspirada na psicanálise, filosofia, literatura, artes plásticas, mas sobretudo na psicologia junguiana, Nise identifica os fundamentos teóricos que iriam compor o seu trabalho. Assim as atividades ocupacionais foram se desenvolvendo gradualmente, mas é acima de tudo, no encontro com Almir Mavignier, pintor e professor de arte, que consolidou o rumo das atividades ocupacionais.

Almir reorganizou o ateliê de pintura em 1946 e três meses depois realizou a primeira mostra dos trabalhos produzidos pelos pacientes internados. Era o início de uma sucessão de exposições no Brasil e no mundo.

Em 1952, Nise e seus colaboradores fundam o Museu de Imagens do Inconsciente, que reúne atualmente mais de 350 mil obras, sendo ainda centro de pesquisa do processo criativo e a doença mental.

Logo de início chama a atenção de Nise a produção criativa e intensa de imagens com temas circulares. Não compreendia a manifestação de imagens que apontavam organização, harmonia e integração em mentes que indicavam patologia, dissociação.

Em 1954 escreve a Jung enviando parte deste material, o qual responde e confirma seu potencial compensatório, de ordem e auto cura. Nise encontra a abertura que procurava para suas perguntas e a partir daqui fundamenta sua prática clínica.

Os seus princípios são relativamente simples, em primeiro lugar valoriza o ambiente acolhedor, livre e catalisador de afetos, como por exemplo, a presença de animais. Considerava este aspeto fundamental no processo de recuperação.

Neste ideal de ambiente acolhedor, cria em 1956 a “Casa das Palmeiras”, como forma de servir de ponte entre o hospital e a sociedade. É o início do conceito de centro dia como alternativa para evitar as internações.

A fim de consolidar seus fundamentos teóricos da TO, aprofunda estudos na fenomenologia, filosofia, mitologia e literatura. Mas é sobretudo a fenomenologia que fundamenta sua prática clínica. Na atitude fenomenológica encontramos sua proposta de trabalho, a qual denominou de ‘emoção de lidar’, compreender as pessoas a partir da interação com elas, invés da rotulagem. Ao invés da prioridade na psicopatologia busca a compreensão pelos ‘modos de ser’ das pessoas em doença mental. Abdica da posição do saber para observar seus clientes empaticamente e compreendê-los a partir da interação com os mesmos. Finalmente, sua postura frente as pessoas foi de valorizar a experiência vivida pelos mesmos, o acolhimento à relação e o respeito a subjetividade.

Agora que chegamos a bom porto e desembarcamos ao comando da Dra. Nise, cada um irá seguir sua viagem pessoal, iremos nos separar e despeço-me com uma nota de agradecimento a Dra. Nise da Silveira:

 “ - Estimada Dra. Nise, muito temos de reconhecer na sua atitude desbravadora da mente humana, na sua forma de lidar emocionalmente com as pessoas, na sua conceção da psicopatologia como modos de ser, no estabelecimento afetivo e na livre expressão artística que marcam sua obra.

Muito temos de aprender com sua viagem profissional e pessoal, você sempre se colocou na atitude de aprendiz, não dogmática e perseverante como pesquisadora incansável. Ousou navegar por mares que a levariam a pisar um novo continente, cuja inovação permitiu abrir o caminho de expressão da criatividade, da emoção e da imaginação. Invés de repetir o padrão de asilar o doente, você estimulava que restabelecessem as relações com o meio.

A meta para si não poderia ser só na remoção dos sintomas, mas ouvi-los e compreendê-los para recupera-los à comunidade. Assim o indivíduo deixava de ser o paciente para a adquirir a condição de pessoa, como você fazia questão de chamá-los, pelo nome e não pelo diagnóstico, cliente invés de paciente.

Descobriste que ao ampliar sua escuta, constatou que o doente mental dos livros não condizia com aquele que você convivia, pois a listagem de sintomas era insuficiente para captar a totalidade de um ser humano. Isso não quer dizer que a Dra. negasse os conhecimentos teóricos e práticos da psiquiatria, mas lembrava que este conhecimento não deveria enrijecer a prática terapêutica frente à pessoa. Se as duas coisas estiverem juntas, é o ideal.

Você é fantástica neste aspeto: desconstruir a cisão entre o normal e o patológico, resgatando o sujeito que está por detrás do diagnóstico. Consigo, aprendemos que nunca se deve reduzir as expressões emocionais das pessoas á exclusividade da interação verbal, a sua experiência em Engenho de Dentro demonstra que há muito mais para além da expressão verbal, pois para si, o que cura, é o estímulo a criatividade, ao fundamento de que a individuação é um processo de auto cura, autorregulação, desde que se valorize o processo de criatividade como veículo de dar forma as emoções e a produção de símbolos.

Capitã, minha capitã!





[1] Comunicação apresentada nas jornadas de Saúde Mental, Vizela, Portugal.  A finalidade deste texto é permitir a reflexão de estudos avançados em psicologia desenvolvimentista analítica na prática do psicólogo inserido no âmbito dos cuidados primários 
[2] Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde. Especialista em Psicologia Analítica. Psicólogo clínico no Aces Alto Ave. 

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